Abre-se os olhos e avista-se muito cinza,
Pedras e concretos mostram que ali não há espaço para ilusão,
Tudo será concreto,
Duro, áspero, acinzentado,
Como cimento queimado,
A imagem é esfumaçada,
Coberta de distrações,
Mas todas reais,
Todas concretas,
Quando se nasce na realidade,
Longe de belas paisagens que lhe faça sonhar,
Distante do verde, do azul, do vento e do sopro de liberdade,
Quando sua cidade é real,
Quando desde cedo ela lhe apresenta o mal,
(Múltiplas vezes mais frequente que o bem),
Quando ela contesta o maniqueísmo não havendo tal bem,
Não significa que não haja o mal,
O cinza encobre o céu,
Os pássaros não têm cor,
Inclusive as pombas raramente são brancas,
Não há paz!
Você está em São Paulo!
E na porta de sua maternidade estava escrito:
“ Aqui jaz! ”
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Felipe Hudson
17 17America/Sao_Paulo outubro 17America/Sao_Paulo 2018 at 2:44 PM
Quando eu escrevi “Aqui Jaz” em março de 2017 eu fiz uma reflexão sobre a dura realidade de nascer na periferia, e ainda mais dura para quem nasceu na periferia de uma cidade como São Paulo. Ao nascer em bairros periféricos de uma metrópole como São Paulo você vive a incoerência de estar na cidade mais rica de seu país, a mais rica da América Latina, com um PIB superior a muitas cidades europeias e mesmo assim estar relegado a pobreza e em alguns casos a cenários próximos aos países mais subdesenvolvidos do mundo.
A cidade de São Paulo permite experiências assustadoras em relação a diferença de classe. Passeando pelos jardins, Perdizes, Higienópolis você pode se sentir em uma cidade de primeiro mundo, ao mesmo tempo que andando na quebrada você pode se sentir em uma comunidade qualquer de países africanos, tudo isso na mesma cidade. Esse caldeirão por vezes entorna quando realidades opostas são colocadas frente a frente.
Por maior orgulho que eu sinta de ter nascido na Periferia, não posso negar que nascer em um local com tão poucas oportunidades e tantos riscos e descaso do Estado é como uma sentença de morte. Em algumas culturas africanas as famílias choram quando crianças nascem e festejam a morte, talvez porque o sentimento de sofrimento por vezes supere a esperança de uma vida de sorrisos.
Às vezes o sentimento de abandono por parte das autoridades e da própria sociedade é tamanho que se questiona inclusive a fé, ou apega-se cada vez mais a ela em busca de um acalanto. A verdade é que encontrar um corpo cravejado de balas em quanto se caminha para a escola, ou quando se volta de um passeio com sua família e aos 7, 8 ou 9 anos lembrar do sangue que escorria pela guia da calçada tingindo a rua de vermelho, não é algo agradável, e gera um olhar diferente sobre a vida se comparado a crianças que viveram em outra realidade.
“Aqui jaz” é isso, é nascer em uma cidade cinza, é não ter tantos dias felizes para recordar e só descobrir depois de velho que essa infância não era comum a todos. É conhecer a realidade ainda na infância, assim como a morte, a violência e o descaso das autoridades. É não viver um conto de fadas e sim um roteiro de suspense com algumas poucas cenas de “humor negro” e em meio a tudo isso ainda conseguir sorrir e pensar que a vida merece ser vivida, mesmo que ao invés de ser recebido com um “bem-vindo” tenhamos recebido nas periferias um “aqui jaz”.